sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Sobre Hotel Cambridge e a fronteira entre verdade e ficção

Se há uma coisa que nos ensinam desde 1895 é a classificar o cinema entre gêneros, modos e intenções. Entre tais sistemas, talvez a maior separação de todas envolva o cinema dito de ficção e o cinema dito documental. Assim, mesmo antes da primeira sequência de um filme, não é difícil ouvir ou mesmo perguntar: é ficção ou documentário? Isso quando os realizadores, à guisa de fortalecer suas narrativas (ou, quem sabe, comercializá-las?), imprimem logo na primeira cartela: “ baseado em uma história real”. Sem querer aqui adentrar (de modo científico e, portanto, superficial) em tão bélica seara, limito-me ao campo que me pertence por direito, o da experiência, ser de simbólicos que sou. Após assistir o (não encontro adjetivos suficientes para descrevê-lo, ainda estou sob o impacto da história) filme Era o Hotel Cambridge, exibido no Festival do Rio 2016, milhares de conceitos de cinema direto e cinema verdade, encenação, captura do real caem por terra, ante a força narrativa. Diante do enorme barulho da obra de Eliane Caffé & cia, a mosca na parede voou, talvez sem entender ainda o que acontecia ao redor, enquanto nós, o público, seguíamos extasiados, sem ligar a mínima para a tal da “asserção do real”. A verdade (que na verdade, se me permitem o trocadilho, são muitas) é que o cinema é o exercício de contar histórias, sejam elas de luz e sombras, sons e silêncio. Mais do que imagens, fazer cinema é manipular o tempo, que será sempre componente de matéria e abstrato, “verdade e ficção”. Já de há muito Flaerty nos ensinara com seu Nanook que, uma vez aberta a a janela para o mundo, não me importa saber se o conteúdo tem a clara intenção de ser um registro fidedigno ou “mera” invenção da realizadora. A emoção que me atravessa, quando me deparo com uma boa história, essa sim é real, palpável e passível de transformar o mundo, quer apontemos para o lado de Lumière ou Meliés. Da mesma forma, em Era o hotel Cambrigde, filme sobre as ocupações de imóveis em são Paulo, ” o real” não está no relato da produção, que passou semanas entre os moradores do prédio, acompanhando ações para abrigar refugiados e o enfrentamento à polícia, mas na construção do cotidiano daquelas pessoas, entre as tarefas diárias e o exercício da poesia. Assim, seja ao mostrar o conserto da luz ou as intervenções artísticas, Caffé usa e abusa de nada mais do que o real por excelência. Mais do que isso. Ao esgarçar a fronteira entre o encenado e o registrado, a diretora inverte o lugar do documental, ao usar de um fragmento de documentário para friccionar o pensamento de um personagem, o maravilhoso Issam.Reais são as emoções do palestino, refugiado de uma guerra infinita em um prédio abandonado da capital paulistana, parte de uma comunidade que sobrevive, entre diferentes línguas e costumes, misturando o mungunzá ao funji angolano, o samba ao dabke palestino. Reais são as relações viscerais que sobressaem na tela, entre equipe e moradores, no enfrentamento a um sistema capitalista e, portanto, desumano...Reais são nossas lágrimas, quando vemos os territórios sensíveis se configurando diante de nossos olhos, quando as mãos e corpos se tocam, se comprimem, diante do braço pesado da polícia, que, indiferente ao debate entre real e ficção, ataca famílias, mulheres, crianças, idosos, em nome de que mesmo? Mais do que o exercício desnecessário da separação ente o real e o imaginário, cabe-nos a tarefa de mergulhar na narrativa de Hotel Cambridge, vertiginosa, visceral, dura, mas, definitivamente poética.

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